quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Seres Sagrados: Origem e Natividade



As divindades e suas relações e interações com os indivíduos da sociedade que lhe é diretamente vinculada são elementos essenciais para se entender qualquer cultura, mas desta premissa antropológica surge a derivação de que as divindades são uma construção cultural, que podemos considerar como etnocêntrica já que se baseia nas “verdades” e parâmetros aceitos pela cultura “científica” ocidental.

Existem alguns pontos que são relevantes a este pensamento. O primeiro deles é a “suposta” ceticidade acadêmica, que em termos gerais se baseia no próprio conceito contemporâneo de ciência, que, a priori, descarta qualquer experiência não comprovável e não reproduzível de modo empírico ao hall das superstições e crendices infundadas enquanto “verdade” comprovável. O segundo é uma crença recorrente no mundo científico de que o cristianismo é uma religião “civilizada”, sem as conotações mágicas e ritualística das religiões “primitivas”, e, portanto, aceitável como fé relacionada a acadêmicos, ao passo que as religiões pagãs seriam aceitáveis apenas em mentes menos “logicas”, já que a magia não pode ser racionalmente demonstrada. Esta visão não é explícita e pode muitas vezes até ser inconsciente, mas é claramente observável na forma com que ambas são tratadas, principalmente no âmbito antropológico, cujas religiões indígenas ou exóticas, que lidem com magia, são tratadas pelos termos bruxaria, ou feitiçaria, termos estes cujas raízes são historicamente vinculadas ao cristianismo, repletos de pré-conceitos pejorativos e povoados de um imaginário cristão herético e profano. Tais religiões, dentro de uma ciência neutra e avessa a pré-conceitos não deveria trata-las em seus próprios termos ao invés de classifica-las usando termos de uma religião que as vê como inimigas ou adoradoras de sua entidade profana oposta a sua divindade sagrada? O segundo ponto, obviamente, tem uma relação muito próxima com o primeiro, pois é baseada no próprio academicismo como um advento próprio do nosso tempo, moldado pelos valores da sociedade que vivemos.
Um terceiro ponto é intrinsicamente ligado aos outros dois e acredito que na verdade seja a origem deles, que é o fato da maioria dos acadêmicos ser cristão ou ateu, porque a academia se forma em meio ao cristianismo, suas regras, seu ponto de vista. Um trabalho científico que não estabelecesse de forma clara um ponto de vista vinculado a estas duas realidades seria descartado como tendencioso ou lunático. Responder o porquê de muitos trabalhos escritos nos últimos séculos, a maior parte escrita até o final do século XIX e inicio do século XX, possuírem uma clara posição cristã de interpretação e desdém das crenças ditas “primitivas” como provenientes de mentes não evoluídas e, não obstante, tratarem o cristianismo com uma falsa imparcialidade condescendente é fácil. Isso se deve ao fato de grande parte destes cientistas serem cristãos se não praticantes ao menos de criação e terem nascido em famílias e comunidades cristãs, partilhando, portanto, a cultura cristã, que vê a si própria como única verdade e rival de todas as outras. Aliado a isto temos um dado peculiar de que o cristianismo é uma religião estrangeira, que não sobreviveu no solo em que nasceu, mas se espalhou pela Europa e América, por motivos políticos e imperialistas. Portanto, ele de certa forma está fora da noção de religião como construção cultural, pois é um elemento externo às culturas que o “adotaram”.
Não podemos esquecer que o próprio ateísmo é uma “religião” ou “aversão religiosa” proveniente de nosso tempo, é uma construção cultural moderna baseada na crença de que não existe nenhuma divindade ou energia espiritual e que a ciência é o começo e fim de tudo.
Digo isto tudo para chegar ao meu ponto inicial de argumentação. Se a ciência moderna, e aqui me refiro em grande parte à antropologia, etnografia, história e filosofia porque são elas que tratam das sociedades humanas e originam as teorias e conceitos à respeito das culturas e sociedades, nasce em meio a um mundo cristão que julga as divindades vinculadas a culturas nativas como “primitivas” e construções da própria cultura que as permeia, será que confiar a esta ciência o veredito sobre o que veio antes, a cultura ou as divindades é uma decisão sensata?
E se o oposto nos fosse apresentado, sendo as divindades anteriores às culturas e à própria sociedade? E se, de fato, as divindades fossem espíritos da terra, diversos e tão regionalizados quanto os ecossistemas e biodiversidade que povoam o mundo?
Trazendo as religiões para uma nova ótica, que dota o mundo de sacralidade e de energias não temporais, vemos, assim como a antropologia relata, que as religiões são tão diversas quanto as culturas, assim como as divindades e as formas com que essas crenças se inserem e atuam dentro de cada sociedade. Ver o mundo repleto de “verdades” e divindades, cada um dentro de sua própria região, influenciando as culturas e sociedades que interagem no mesmo espaço que eles, pode ser algo inusitado a uma mente focada e moldada pelo mundo moderno, mas é exatamente este o ponto em que quero chegar.
Se analisarmos as diversas culturas e suas religiões, veremos que os seres sagrados diferem bastante quanto à região que habitam, muito mais, às vezes, do que quanto às diferenças sociais que os separam ou aproximam, isto, é claro, em se tratando de religiões vinculadas e desenvolvidas dentro de uma cultura. Podemos assim pensar que as divindades e demais seres sagrados são “nativos” daquela região ou se estabeleceram por lá e assim acabaram por moldar as culturas que se fixaram sob sua influência, a fim de tornar sua convivência pacífica. Então teríamos, na verdade, culturas moldadas pelos seres sagrados que habitam cada parte do nosso mundo.
Tal ponto de vista nos obriga a relativizar nossas próprias “verdades”, mas, por outro lado legitima todas as “verdades” históricas e nativas de forma a dar a cada divindade e ser sagrado seu próprio valor individual e integral dentro do seu próprio contexto regional e religioso. Entretanto, como o tempo imaterial e sagrado é irrestrito ao tempo e espaço, temos que divindades sejam adoradas fora de sua região nativa com mutuo reconhecimento e total eficácia, desde que o indivíduo seja capaz de fazer o elo necessário com aquela cultura específica, desenvolvida pela interação direta com os seres sagrados em questão.
Dentro desse raciocínio, podemos concluir que a cultura e a forma religiosa de cada região de origem é a chave para entender e se conectar aos seres sagrados, independente do local material que se aproxime mais de seus próprios planos de existência. Sendo tais elementos aperfeiçoados pelos próprios seres sagrados para uma melhor harmonia com os seres humanos, eles acabam permitindo que o conhecimento pertinente a eles e a prática do ideal de conduta humana em relação a eles, aliados a uma abordagem ritual e mental corretas, sejam capazes de eliminar a distância existente a nível material e criar um elo espiritual consistente e permanente.
Todavia, esta visão cosmológica resulta em entender que, se tratamos de religiões que interagem com seres naturais, viventes em rios, lagos, árvores, animais e até na própria terra, temos que estar cientes que os habitantes “nativos” não são os mesmos da região de origem de uma crença “não-nativa”, embora o veículo natural possa sim, enquanto similaridade energética, propiciar o contato com um ser sagrado “não-nativo” em especial. Mas, acredito que seja necessário e prudente, respeitar e honrar os seres sagrados “nativos” que estão vinculados naturalmente a tais locais.
Sendo assim, estudar sobre a cultura de origem e a religiosidade tradicional atreladas aos seres sagrados “não-nativos”, transformando este conhecimento de acordo com o modelo de conduta ideal, moldado por eles próprios, do ponto de vista individual, social e religioso e aplicando-o à forma ritual, são partes do processo de construção da interação com estes, sem o qual uma conexão efetiva se torna insustentável, por falta de coerência energética. Do mesmo modo se faz necessário conhecer e honrar os seres sagrados “nativos”, uma vez que a região “material” é ligada à região espiritual que estes habitam. Portanto, faz todo sentido, que antes de cada rito dedicado a seres sagrados “não-nativos” se honre os seres sagrados “nativos” de forma a mostrar o devido respeito à sacralidade local.

Original:http://enbarr.wordpress.com/2012/07/08/seres-sagrados-origem-e-natividade/

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